da História e seus valores

Buenaventura Durruti - anarquista


apesar de eu próprio não ser imune ao tique, é sempre com desgosto que vejo, até historiadores consagrados, referirem-se ao passado Histórico, não se coibindo de exercerem sobre ele a formatação moral da atualidade. quero dizer com isto, que a História e os seus desenvolvimentos devem ser interpretados, não há luz da moral coeva mas sim dos valores e cultura do tempo em que ocorreram.
neste caso são especialmente injustiçadas, para não me alongar muito, a época medieval, sobre a qual José Mattoso tem estudos brilhantes e que limpam alguns dos mitos que mesmo assim por aí vão proliferando. outra, é a época da expansão europeia, ou se preferirmos, das descobertas dos navegadores portugueses, espanhóis e "italianos", ou ainda, a ocupação de África, das Américas e a tomada do controlo do tráfego e tráfico marítimo em todo o mundo pelas potências europeias. fala-se muito, estabelecem-se juízos de valor esquecendo-se do que era "o espírito da época".
vem este longo intróito a propósito do programa "governo sombra", emitido pela tvi 24, neste final de semana. a determinada altura, Pedro Mexia, comentador que muito prezo, quer pela sua inteligência, quer pela sua honestidade intelectual, atirou um "remoque" a Ricardo Araújo Pereira, sobre a proclamada unidade, ou não, das esquerdas, dizendo-lhe "essas guerrinhas vem de longe, basta leres o que escreveu Orwell sobre a guerra civil de Espanha e como essa gente se matava uns aos outro" (citei de memória, as palavras não sendo exatamente estas, está aqui o que eu entendi delas).


Andreu Nin - dirigente do POUM, esfolado vivo pela GPU
ora, nem me vou referir ao gosto de trazer para um programa que está entre o humorístico e o comentário político ligeiro, mesmo brejeiro, que ainda comove muitos que o viveram ou seus descendentes e até familiares dos que morreram.
pelo seu silêncio "à boca" do seu colega de painel, presumo que Araújo Pereira não terá lido os escritos de George Orwell, ou qualquer outros sobre a questão.
eu li e do que li fiquei a milhas da conclusão simplista de Mexia "que aquela gente das esquerdas se andou a matar uns aos outros". é verdade que a unidade de republicanos e as chamadas esquerdas no combate a Franco era mais formal que efetiva, pois havia todo um rol ideológico a separá-los.
a Espanha ainda hoje não vive bem com o seu corpo, a unidade ibérica à qual por motivos históricos mais antigos apenas se safou Portugal e por um triz.


juan negrin - dirigente do PSOE, acusado de ligações ao PCE e subordinação ao estalinismo
na guerra civil todos esses problemas estiveram à flor da pele e uma análise simplista, como a apresentada por Mexia, mesmo tendo em conta o contexto em que foi proferida, não podia, não devia ter sido tão leve e breve.
em confronto não esteve a direita de Franco com a esquerda da frente popular, na frente popular também estavam forças de direita democrática, como os republicanos, nacionalistas bascos, alguma burguesia comercial e industrial, sobretudo catalã, independentistas, autonomistas, sindicalistas e depois os grandes partidos e organizações nacionais e regionais, como o PSOE, o PCE, a CNT e a FAI (anarquistas que na altura teriam mais de 1 milhão de aderentes em toda a Espanha) e o POUM da Catalunha, liderado pelo infeliz e martirizado Andreu Nin.
é evidente que unidade a sério só existia do lado franquista e que pela miríade de organizações, cada qual com a sua própria agenda política e ideológica para Espanha, a guerra só poderia ser ganha pelos franquistas.
mas é muito cruel afirmar que aquela gente se andou a matar uns aos outros como se os crimes perpetrados pelo exército franquista e seus apaniguados, a propósito referir que eram de direita algo que Mexia quase sempre se esquece de referir, não tivessem existido.


Indalécio Prieto - principal dirigente do PSOE
é verdade que no meio de tão grande amálgama de diferentes ideologias e interesses políticos, houve divergências que não foram resolvidas de forma pacífica, houve discussões resolvidas a tiro e seladas a sangue. muitas das vezes, inflamadas por agentes provocadores dos serviços de segurança de Franco, infiltrados na Frente Popular, e a partir do momento em que a União Soviética entra no conflito, esses incidentes quando não provocados por agentes espanhóis (em grande parte militantes do PCE, mas não só) a soldo da GPU (antecessora do KGB), polícia política de Estaline, eram os próprios agentes soviéticos da GPU destacados em Espanha que faziam o serviço sujo, tais como os assassinatos de Andreu Nin e de Buenaventura Durruti, o primeiro um ato absolutamente macabro e sádico, Nin foi torturado e esfolado vivo, Durruti foi abatido em Madrid por "uma bala perdida", do primeiro há hoje a certeza que o crime foi praticado pela GPU, do segundo não havendo certezas absolutas, as provas indicam ou uma ação apenas da GPU, ou desta em colaboração com os franquistas.
Estaline, nesta altura, estava já mais preocupado em salvar o próprio couro e bigode, preparando o tratado germano-soviético, ou Molotov-Ribenttrop, do que ao que pudesse acontecer em Espanha.


Largo Caballero - dirigente do PSOE e da UGT, foi presidente do governo durante a guerra civil
também teria sido bom referir a posição que os governos, sobretudo os governos francês e inglês, tomaram em relação a este conflito. estes eram dois governos democráticos, de direita e que a todos os horrores da noite espanhola fecharam os olhos. para não falar do apoio explícito que os governos italianos e português ofereceram a Franco, duas ditaduras, é certo, mas governos de direita.
apesar da sua honestidade, inteligência e argúcia de argumentação, é comum, Mexia referir em muitos dos seus comentários, os crimes contra a humanidade que os regimes "comunistas" cometeram, em especial, o regime estalinista soviético, fazendo pior, associa "essa esquerda" e esses crimes a todos, ou quase, os que se afirmam de esquerda hoje em dia, não tomando a mesma medida na denúncia dos crimes cometidos por regimes de direita, para não me alongar muito, refiro apenas a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, a Espanha de Franco e, por que não?, Portugal de Salazar. mesmo quando o faz, muito esclarecidamente como é óbvio, nunca os (crimes) associa a quem atualmente se diz de direita como ele próprio, o que seria imbecil.


Dolores Ibarruti "La Pasionara" - dirigente do PCE
Pois continuarei a ouvir e a ler os comentários de Pedro Mexia com todo o gosto e prazer, mas tal como eu, pelo facto de ele se assumir ideologicamente de direita, não o associo nem responsabilizo pelos crimes cometidos por Salazar, Pinochet ou Somoza, agradeço que da parte dele tenha o mesmo respeito e tratamento e deixe de associar e querer tornar responsável, qualquer pessoa que se assuma de esquerda como conivente com o estalinismo, ou o maoismo, ou o fidelismo, ou o raio que o parta, e pior, apontar quem se assume de esquerda como um assassino e um violador dos direitos humanos em potência, pelo menos foi o que deixou subentender num comentário soez que deixou no mesmo programa, sobre a possibilidade do Syriza vir a ganhar as eleições na Grécia e a chegar ao poder.


Franco - o ditador
mas segundo parece, na Grécia, os torturadores e assassinos até foram de um governo de coronéis, curiosamente, de direita.


Federico Garcia Llorca - a vítima
(nas imagens poderão ver-se: Largo Caballero, José Negrin, Indalécio Prieto; Andreu Nin, Buenaventura Durruti, Francisco Franco, Estaline e Federico García Llorca)
 (8 fotos)

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