Oração do 10 de junho, dia da raça, pelo escriba da nação


Portuguesas e portugueses:



Muito obrigado José Cruz, pelo menos uma vez na vida foste brando para com o criminoso.

Boa tarde a todos e muito obrigado pela gentileza da vossa presença.

Heliogábalo, imperador romano entre 218 e 222 d.C., nunca quis tal cargo, foi empurrado para ele apenas com 14 anos, pela sua avó, diz-se que quando entrou na sua quadriga, em Roma, para ser aclamado imperador, o terá feito de costas, uma vez que era homossexual, ele entrava assim, não para possuir a cidade, mas para que a cidade o possuísse a ele.

Eu estou de frente, mas também não quero possuir ninguém, apenas, se puder ganhar alguns leitores.

Vou iniciar com uma citação, as citações são como organizadores morais do pensamento, esta de alguma maneira resume uma parte do meu pensamento e encontrei-a, deslumbrado, há dias ao folhear um velho livro. Estava ali. Está aqui:



“Mas a linha que separa o bem do mal atravessa o coração de todas as pessoas… Essa linha é móvel, oscila dentro de nós com o passar dos anos. Mesmo num coração dominado pelo mal, ela deixa sempre um pequeno espaço do bem. E mesmo no coração mais generoso há um inextirpável cantinho de mal”

Aleksandr Soljenítsin



Sou do tempo do “Chico Fininho” e não padecendo dos seus males, nem partilhando de alguns dos seus interesses, ainda vou pelas ruas ao som do Lou Reed.

Do falecido Lou Reed.

A vida é assim, num dia somos jovens, no seguinte enterramos familiares, amigos e ídolos.

Não podia iniciar esta alocução sem relembrar aqui a memória de meu pai Fernando, infelizmente já falecido. Sempre acreditou, vá lá saber-se porquê que um dia eu faria algo de extraordinário, ilusões de pais. Bem pai, tens que esperar porque este livro é apenas ordinário.

Quero ainda evocar o meu querido amigo, também já falecido, Júlio Lourinho, provavelmente o melhor amigo que tive ou alguma vez terei. Em Macau fomos irmãos e era ele quem lia o que eu escrevia e no fim ria a bandeiras despregadas.

Um abraço querido amigo. Na vida, procuraste ser feliz e no preciso momento em que o eras, morreste-nos.

Evoco ainda, o amigo Carlos Januário, companheiro da mesma idade, do berço até aos quarenta e oito anos quando a doença o levou e nos deixou órfãos do carlinhos, companheiro, não só, mas sobretudo do curtir as mágoas leoninas que o Sporting nos ia dando. Um abraço caro carlinhos.

Na agenda da UNICEF, deste ano que tiveram a gentileza de me oferecer, vem uma frase curiosa de Ishamel Beah: “Se estás vivo, há uma forte possibilidade que algo de bom te aconteça.” E é verdade, mas é certo que se estás vivo, a qualquer momento, uma coisa muito má te atinge: a morte.

Enfim, é a condição humana e a ela não podemos escapar.

Estou perante o mais custoso texto que jamais escrevi falar de mim e do que fiz, constrange-me, e pior que isso, acho que a obra não está lá grande coisa. Apelo, pois, à vossa paciência para escutarem alguns minutos de martírio.

Sem querer parecer e muito menos ser pedante, julgo ser comum, nestas circunstâncias, o autor falar um pouco de si, apesar de ser conhecido de ginjeira pela maioria dos presentes, há sempre um segredo mais escondido por revelar.

O meu nome é Jaime Crespo, tenho 54 anos e sou um modesto professor primário

Sou casado e tenho uma filha e um cão.

Nasci na pequena vila do alto Alentejo, Tolosa, no concelho de Nisa, distrito de Portalegre.

Filho de um simples funcionário público e de uma doméstica. Tenho uma irmã mais velha, um cunhado que é quase irmão e uma linda sobrinha.

Da infância guardo três acontecimentos marcantes: um conselho, a doença e a educação.

Quando criança, um militar vagamente familiar, o tenente Valdez ou Maltez, algo assim, após ouvir duas ou três facécias minhas na escola primária, disse-me:

“- Rapaz, tu és esperto. Mas a escola e a vida são como a tropa. Não te atrevas a ser o melhor e livra-te de seres o pior. Fica-te pelo meio, esses estão sempre descansados, os outros, sempre a ser chamados à liça.”

E, toda a minha vida, tenho procurado a discrição dos medianos, mas da mediania não tenho obtido a proclamada doçura, para mim, apenas amargura.

Sempre fora uma criança alegre e saudável, mas a partir dos 3 ou 4 anos, comecei a adoecer com frequência anómala.

Foram a asma, o sarampo, a tosse convulsa, a varicela… uma encefalite aguda que me levou ao internamento na ala de infetocontagiosos, do Curry Cabral. Eu, menino, completamente sozinho, afastado da família, numa cama de hospital.

A minha mãe encontrou maneira de me ver, através da janela do quarto, Por vezes batia levemente no vidro para que eu olhasse e a visse também.

Assim, tão novo, comecei a curtir a solidão.

Nasci no seio de um país católico apostólico romano, no qual Fátima era a única esperança servida a um povo, pobre, inculto e desesperado.

Já não estudei pela cartilha única, com Salazar a cadeira já tinha cumprido o seu dever, Caetano tinha chamado Hermano Saraiva e Veiga Simão que começaram a reformar a educação. Apesar de tudo ainda tive que aprender o catecismo, com um padre gordo, ao qual faltava completamente o dom da palavra. Mas também se chamava Jaime e também era do Sporting, pelo que de vez em quando levava a mão ao bolso da batina e retirava para me oferecer um caramelo espanhol, autêntico luxo naquela época.

E num país católico, a minha família também o era, devotamente.

Hoje, afirmo-me esclarecidamente ateu, mas há um véu católico que ainda tolda o meu discernimento.

Da pequena vila alentejana saí com 26 anos, diretamente para a metrópole cosmopolita de Macau. Pensava ser maturo e saber tudo. Mas não era nada disso, era jovem e que jovem era, tímido e ingénuo, rude, como eu só.

E de uma noite para o dia tive que me fazer homem, entre o mais sórdido que a humanidade é capaz. Uma humanidade que na barbárie, civilizou-se, agora, na civilização cai constantemente na barbárie.

E em Macau, fui sórdido na minha barbárie.

São 27 anos de afastamento da minha aldeia, mais que o tempo que lá vivi. Lá, regresso esporadicamente.

O resto, o que sou agora, foi a vida que fez, mas continuo o mesmo rapazola, tímido, ingénuo e rude que num quente dia de finais de setembro, abandonou a sua aldeia natal.

Posso parecer exuberante, excêntrico, até, mas não passam de camuflagens à minha timidez e ingenuidade.

Apesar deste afastamento temporal e físico à aldeia, tudo o que escrevo ainda anda à volta dela pois a janela pela qual vejo o mundo ainda são aqueles olhos grandes e deslumbrados de menino que eu lá deixei.

Falemos então do livro que agora apresento.

Desde que me conheço, ainda antes da escola e do saber ler e escrever que me recordo com um lápis e papel a rabiscar, primeiro, a escrever depois.

No meu percurso escolar, da escola primária, ciclo de Nisa, escola industrial e magistério primário de Portalegre, acabando na Universidade de Macau, sempre tive professores a dizerem-me “tu escreves bem, dedica-te a isso que vais ver vais fazer vida disso”.

Fazer vida. Foi isso mesmo que tive que fazer, casado e com uma filha fiquei ainda mais agarrado ao ensino.

Trabalhar, trabalhar, trabalhar…

Depois também as mudanças de residência e de escola. De tal maneira que só voltei a lembrar-me da escrita, mais a sério, depois dos 50 anos e de a memória me começar a faltar. E também a vida conhecer agora mais estabilidade.

Pensei “ou é agora ou já não é”.

Então peguei nalguns textos que já tinha escrito, trabalhei-os, escrevi outros de novo e assim cheguei a esta compilação que hoje vos apresento: Texturas Diversas.

Como o título indica, tratam-se de textos diversos, abordando diferentes temáticas.

Variado em temas e linguagem, serviu-me, sobretudo, para criar e apurar o meu estilo e para optar, a partir de agora em diante, pela ficção, uma vez que concluo que esta é mais real que a realidade.

No nosso tempo, o atual, das redes sociais e da comunicação fácil, parece que todos foram abençoados pela luz e querem mostrar ao mundo, a boa nova.

Não eu, uma vez mais fui esquecido por deus e não tenho nenhum segredo a revelar, apenas vulgaridades, sobre gente, como eu, vulgar. E textos dirigidos a pessoas vulgares.

Não é o livro que eu queria, é apenas o livro possível. Dentro das possibilidades que o admirável mundo capitalista permitiu.

Nem sequer é bem um livro, é um livrinho, mas espero que tal como os homens não se medem aos palmos, os livros também não se meçam às páginas.

Por vezes escrevo sobre o meu íntimo, o amor, o ódio, os gostos pela leitura, pelo cinema, pela música, situações prosaicas, textos de teor político… Estes, serão os últimos que produzirei sobre o assunto, já nada tenho a dizer sobre política.

Uso uma frase que pela organização das palavras pode parecer um verso, apresento pequenos textos que poderão parecer poemas, mas sou apenas eu a querer cortar as amarras da prosa.

Poeta não sou nem sei escrever poesia.

Após páginas de calma e bem cuidada linguagem, poderão sentir o murro no estômago de um barbudo palavrão. Também na linguagem procuro o meu registo e ainda sou neófito o suficiente para perder o controlo linguístico.

Certo de que cometi mais erros que acertos e as dúvidas são bem superiores às certezas, com a agravante de nunca, ou quase, encontrar uma certeza para alguma das minhas dúvidas.

De certa maneira, todos desejamos transcender-nos. E não fora esse sentimento, não havia evolução. No entanto, antes de evoluirmos, a cada centímetro dessa evolução, correspondem quilómetros de insucessos e de erros.

Por detrás de cada sucesso há uma enormidade de fracassos a suportá-lo.

Dizem os ingleses “todos apreciam a beleza do cisne deslizando sobre as águas, mas ninguém vê a fealdade das patitas a mexer sob as águas”.

Peço-vos que vejam neste livro uma metáfora do cisne invertido, aqui vão ver as feias patas e terão que imaginar a beleza do cisne.

“Nem tanto à terra, nem tanto ao mar”. Julgo que este meu livro se afere pela bitola da mediania.

É claramente a obra de um principiante em busca da sua voz própria, daí a heterogeneidade de temas abordados e a variação nos tipos e níveis de linguagem utilizados.

É um livro de prosa, procurando a experiência e a inovação.

O que o livro poderá perder em consistência, ganha-o em diversidade.

Poderia ser, mas não é, uma autoajuda para vencer a depressão. Mas foi placebo na minha luta sem tréguas contra a minha depressão.

Debrucemo-nos sobre um provérbio chinês: “não acrescentes pernas à serpente”.

Querem eles dizer com isto que há pessoas demasiado perfeccionistas, de tal modo que acabam por estragar a sua obra. Pelo que devemos ter o tempo exato de parar. E eu parei por aqui.

Preferi a frase crua ao burilamento da linguagem, perco talvez em arte, mas ganho em sinceridade. Não me incomodam os juízos de valor sobre a obra, afetam-me aqueles que são tecidos á priori.

E canta Sérgio Godinho “A vida é feita de pequenos nadas”

No final, apesar de todo o pretensiosismo e arrogância, não passo de um pobre despojado, pedindo por um pouco de ternura, na inóspita terra de ninguém.

Mas quem acaba sempre por ser o juiz de um livro, mesmo para lá dos críticos e teóricos literários são os leitores.

Deixo com todo o gosto e prazer, o livro ao vosso critério.

Agora o tempo do autor passou, estamos já no tempo do leitor. É com prazer que cedo o meu protagonismo a todos vós: leitores.

Pois se ao fim e ao cabo, o veredicto final sobre qualquer obra cabe sempre aos leitores.

Aguardo com humildade, o vosso.

Por favor, elogio-vos a paciência, mas necessito apenas de mais uns momentos para uma efeméride, prometo ser breve.

Estamos no ano da graça (ou desgraça, depende da perspetiva) de 2017. Desde fevereiro, aceitando as balizas colocadas pelos historiadores, que se estão a perfazer cem anos, um século, sobre os acontecimentos que conduziram à Revolução Russa, ou soviética se preferirem.

Mas pelo que vemos, lemos ou ouvimos, parece que nada aconteceu há precisamente cem anos.

Derrubaram o muro de Berlim para construírem outro, invisível, mental, em torno da Revolução dos Sovietes.

Sem desvalorizar o que veio a seguir: Estaline, purgas, o arquipélago de gulags, etc. Os locais para estes debates são outros.

Muito bem, ficámos a saber por que caminhos não trilha o socialismo e que vias não nos dão acesso ao comunismo.

O que me interessa evocar na Revolução Soviética é o seu significado moral, a marca indelével que deixa no campo das mentalidades e das ideias e aquilo que as máquinas de comunicação se esforçam em esconder.

Se nas Revoluções Francesa e Americana, foi a burguesia terratenente e enriquecida, mas arredada do poder político quem se revolta, massacra e aprisiona a velha nobreza, na Revolução Soviética é o povo miúdo, a escória da sociedade quem se ergue dos tugúrios onde estava enfiada e demonstra a todo o mundo que operários e camponeses quando unido sob um mesmo e bem definido objetivo também são capazes de se levantarem do chão e derrubar impérios.

E foi o que aconteceu, na Revolução Soviética, o povo russo ergueu-se como um só e derrubou o império dos Romanov, o que não foi coisa pouca…

Tenho sede de Utopia e é também a Utopia que aqui celebro.

Por vezes, os literatos, do alto da arrogância do seu saber, tomam para com os seus semelhantes, atitudes levianas.

Que aqui, hoje, ninguém sinta leviandade.

E assim termino, uma vez mais as minhas desculpas pela morosidade e moralidade da intervenção, espero que me perdoem.

À minha mãe, o meu mais profundo obrigado e agradeço-lhe com um beijo de ternura e carinho, por ter feito o homem que hoje sou

Muito Obrigado a todos pela atenção e santa paciência com que me ouviram,

Pois é, agora batem palmas, depois de lerem o livro, batem em mim e atiram pedras…



Jaime Crespo


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