BATISTA BASTOS FALA DE CAVACO


BATISTA BASTOS FALA DE CAVACO
A pátria, estarrecida, assistiu, nos últimos dias, à declaração de pobreza

do dr. Cavaco, e aos ecos dessa amarga e pungente confissão. O gáudio e o

apoucamento, a crítica e a repulsa foram as tónicas dominantes das emoções.

Os blogues, aos milhares, encheram-se de inauditos gozos, e a Imprensa,

grave e incomodada, não deixou de zurzir no pobre homem. Programas de

entretenimento matinal, nas têvês, transformaram o coitado num lázaro

irremissível. Até houve um peditório, para atenuar as suas preocupações de

subsistência, com donativos entregues no Palácio de Belém. Porém, se nos

detivermos, por pouco que seja, no dr. Cavaco e na sua circunstância

notaremos que ele sempre assim foi: um portuguesinho no Portugalinho.

Lembremo-nos desse cartaz hilariante, aposto em tudo o que era muro ou

parede, e no qual ele aparecia, junto de um grupo de enérgicos

colaboradores, sob o extraordinário estribilho: "Deixem-nos trabalhar!"

Cavaco governava pela primeira vez e os publicitários colocaram-no e aos

outros em mangas de camisa arregaçadas. Os humoristas de serviço rilharam os

dentes, de gozo, mas a época não era propícia à ironia. O País tornou-se

numa espécie de imagem devolvida do primeiro-ministro: hirto, um espeque

rígido, liso, um carreirinho de gente cabisbaixa.

O respeitinho é muito lindo: essa marca d'água do salazarismo regressava

para um país que perdera a noção do riso, se é que alguma vez o tivera.

Cavaco resulta desse anacronismo que fede a mofo e a servidão. É um sujeito

de meia-tigela, inculto, ignorante das coisas mais rudimentares, iletrado e,

como todos os iletrados, arrojado nas afirmações momentâneas. As suas

"gaffes" fazem história no anedotário nacional. É um Américo Tomás tão

despropositado, mas tão perigoso como o original.

Manhoso, soube aproveitar o momento vazio, no rescaldo de uma revolução que

também acabou no vazio. Os rios de dinheiro provindos de Bruxelas, e

perdulariamente gastos, durante os infaustos anos dos seus mandatos,

garantiram-lhe um lugar de aplauso nas consciências desprotegidas dos

portugueses. Este apagamento da verdade está inscrito, infelizmente, numa

Imprensa servida por estipendiados, cuja virtude era terem o cartão do

partido. Ainda hoje essa endemia não foi extirpada. Repare-se que, fora

alguns escassos casos isolados, ainda não foi feita a crítica aos anos de

Cavaco e das suas trágicas consequências políticas, ideológicas, morais e

sociais. Há uma falta de coragem quase generalizada, creio que explicada

pela teia reticular de cumplicidades, envolvendo poderes claros e ocultos.

A mediocridade da personagem é cada vez mais evidente. E se, no desempenho

das funções de primeiro-ministro, foi sustentado pela falsa aparência de el

dourado, devido aos dinheiros da Europa, generosamente distribuídos por

amigos e prosélitos, como Presidente da República é uma calamidade

afrontosa. Tornou o lugar desacreditante e desacreditado.

Logo no primeiro dia da sua entrada no palácio de Belém, o ridículo até teve

música. Um país espavorido assistiu, pelas televisões, sempre zelosas e

apressuradas, àquela cena do dr. Cavaco, mãos dadas com toda a família, a

subir a rampa que conduz ao Pátio dos Bichos, e ao interior do edifício. Um

palácio que não merecia recolher tal inquilino. Mas ele é mesmo assim: um

portuguesinho no Portugalinho, um inesperadamente afortunado algarvio, sem

história nem grandeza, impelido para o seu peculiar paraíso. A imagem da

subida da ladeira possui algo de ascensão ao Olimpo, com aquelas figuras

muito felizes, impantes, formais, intermináveis. Mas há nisto um panteísmo

marcadamente ingénuo e tolo, muito colado a certa maneira de ser

portuguesinho e pobrezinho: tudo em inho, pequenininho, redondinho.

Cavaco nunca deixou de ser o que era. Até no sotaque que não perdeu e o leva

a falar num idioma desajeitado; no inábil que é; no piroso corte de cabelo à

Cary Grant; no embaraço que sente quando colocado junto de multidões ou de

pessoas que ele entende serem-lhe "superiores." Repito: ele não dispõe de um

estofo de estadista, e muito menos da condição exigida a um Presidente da

República.

O discurso da sua pobreza resulta de todas essas anomalias de espírito. Ele

tem sido um malefício para o País. É ressentido, rancoroso, vingativo,

possidónio e brunido de mente. Mas não posso deixar de sentir, por este

pobre homem, uma profunda compaixão e uma excruciante piedade.


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